Aluno: Artur Guilherme Wittitz
Data: 20/07/2024
Herói ou vilão?*
Costumeiramente, ao sermos introduzidos a alguma narrativa moderna, cinematográfica ou literária, somos apresentados a personagens bastante definidos. Por exemplo, Drácula é o vilão, Dr. Van Helsing é o herói; Antonio, o mercador de Veneza, é o herói, e Shylock é o vilão; Harry Potter é o herói e Voldemort é o vilão.
Entretanto, ao sermos apresentados a personagens da tragédia ou comédia antiga ou da ópera - descendente moderno das duas primeiras –, surgem personagens mais complexos do que o puro maniqueísmo dos anteriores. A título de exemplo, há Édipo: antes de se tornar tirano de Tebas, foi recebido como o herói que livrou a cidade da tenebrosa Esfinge. Após sua ascensão ao cargo máximo de Tebas, tornou-se paranoico ao defender seu poder e fez uso de ameaças para investigar sua origem.
O cunhado de Édipo, Creonte, não agiu de modo diverso. Antes de suceder a Édipo, tentou honestamente ajudá-lo a descobrir a razão da peste que assolava a cidade. Com a derrocada de Édipo, Creonte ainda se demonstrou razoavelmente piedoso ao tentar proteger Édipo da desgraça divina. Entretanto, ao se fixar no trono de Tebas, não demonstrou piedade ao seu sobrinho Polinices, condenando-o a não ser sepultado – uma clara violação da lei divina. A mesma impiedade foi dirigida a sua sobrinha Antígona, a qual só desejava cumprir o ritual fúnebre adequado.
Em um exemplo moderno, o Conde de Almaviva, personagem de óperas de Mozart e Rossini, surge primeiro como um jovem romântico, disposto a conquistar Rosina e salvá-la do claustro injusto de Bartolo. Posteriormente, após casar-se com Rosina, surge como um tirano lascivo que tenta a qualquer custo reavivar o jus primae noctis, para assim satisfazer o seu desejo por Susanna, noiva de Fígaro.
Dentre todos esses exemplos, a repetição do personagem herói-vilão é uma constante chamativa. Não só se repete na antiguidade, mas também atravessou o tempo e inspirou a dramaturgia moderna. Haveria alguma razão para o uso repetitivo desse tipo de figura literária?
No âmbito dos exemplos trágicos – Édipo e Creonte, podemos esclarecer através de um trecho da tragédia “Édipo Rei”. Ele se encontra no segundo estásimo da peça, nos versos 873 ao 882. Nesse trecho, o coro da tragédia explica que a “Híbris” – a desmedida, a soberbia – é a causa originária de um tirano. Contudo, e ainda segundo o coro, a mesma “Híbris” provocaria a derrocada do tirano soberbo, pois ela leva o mesmo a desejar coisas demais, inúteis, de forma intempestiva e sem apoio justo e correto. Dessa maneira, o tirano sofreria a desgraça não só por ofender os limites do humano, mas principalmente por causa dos seus próprios atos.
Logo, podemos entender que Sófocles – o autor de Édipo Rei e Antígona – escolheu figurar inicialmente Édipo e Creonte como heróis para produzir uma encenação sobre o que é a “Híbris”, isto é, qual é o limite apropriado do ser humano. Por figurarem primeiramente como nobres heróis, exemplos maiores de nobreza e dos valores da pólis, a sua posterior derrocada de certo produziria um maior efeito aterrorizante e compassivo na plateia, visto que a queda não é a de um vilão aversivo, mas de uma pessoa virtuosa que, a princípio, não deveria ser alvo de punição divina. Portanto, os exemplos de Édipo e Creonte, devido ao seu extremo contraste entre herói-vilão, descreve-nos com grande efeito cênico que mesmo os virtuosos, se não respeitarem os limites do humano, serão punidos pelos seus próprios atos.
E quanto ao exemplo do Conde de Almaviva? Naturalmente, por ser um personagem de uma ópera cômica, o efeito cênico de sua personalidade deve contribuir antes para uma comicidade do que para uma tragicidade. Além disso, o seu final é de remição em vez de condenação. Portanto, o Conde de Almaviva não tem um tratamento trágico. Dessa forma, para entendermos o seu papel na peça, ele precisa ser analisado sobre a chave da Comédia.
Nesse sentido, e por ser a ópera cômica um descendente da Comédia Romana, podemos ressaltar elementos similares entre o Conde de Almaviva e dois personagens da Aulularia: Euclião e Licônides. Licônides seria um exemplo do caráter heroico de Almaviva apresentado no “O Barbeiro de Sevillha”: jovial, idealista, romântico e perdidamente apaixonado por uma moça cujo pai/tutor é um velho desprezível. Já Euclião seria a faceta vilã do Conde de Almaviva em “As Bodas de Fígaro”: soturno, desconfiado de tudo e todos, obstinado em obter ou salvar algo muito caro a si e sempre arquitetando ciladas para se safar e para ludibriar os outros.
Contudo, em que pese a infâmia desse personagem, os finais das óperas cômicas em que ele aparece são similares aos finais das Comédias Romanas: através de engodos e confusões todos terminam felizes, seja por regeneração do caráter, seja pela vitória dos heróis cômicos.
Dessa maneira, é possível afirmar que o personagem do Conde de Almaviva, enquanto herói cômico, tem o papel de entrar em conflito com o seu adversário, provocando situações absurdas e exageradas. Ao contrário, enquanto vilão cômico, o seu papel é também entrar em conflito com um adversário, mas para dificultar e criar problemas ao seu oposto. Logo, o seu papel de herói-vilão tem o condão de gerar um conflito cômico, seja em que polo do conflito ele se encontre.
*Este texto foi escrito a fim de compor a avaliação parcial da disciplina de Teatro Antigo, ministrada pelo Professor Dr. Guilherme Gontijo Flores na Universidade Federal do Paraná (Primeiro semestre de 2024)